16/11/04

A CULTURA DO DESPERDÍCIO I

Depois de assistir à assunção da cultura como um bem essencial por parte do Estado que conduziu à criação de um Ministério da Cultura, à criação embrionária de uma Rede de Cine-Teatros, à criação de um sistema de apoio financeiro à arte contemporânea, ao florescimento da criação contemporânea e à estruturação embrionária de um tecido cultural diversificado e disseminado pelo país, a comunidade artística acreditou estar a assistir ao esboçar de uma política cultural. Nos últimos dez anos, criadores, intelectuais, produtores e técnicos, foram parceiros activos na criação das condições para a sua materialização. Criaram estruturas profissionais que se disseminaram por todo o país (mesmo em contextos culturalmente carenciados), contribuíram para a projecção de artistas nacionais no estrangeiro, criaram entre elas dinâmicas de trabalho e parcerias que permitiram a optimização dos recursos e o desenvolvimento de um tecido artístico profissional e activo. Nos últimos anos criaram-se estruturas supra-associativas (REDE, APPC, PLATEIA) que participaram activamente na discussão da lei orgânica do Instituto das Artes e na legislação do novo sistema de apoio financeiro, e que têm mantido algum diálogo com o IA e com a Secretaria de Estado da Cultura. No entanto, o processo de construção de uma verdadeira política cultural tem sido continuamente minado pela sucessiva mudança de orientações políticas, com todas as suas consequências. A instabilidade criada por constantes mudanças nas equipas ministeriais, que sucessivamente deixam na gaveta muitos estudos e medidas por implementar, a fusão do Instituto Português das Artes do Espectáculo com o Instituto de Arte Contemporânea, o atraso na implementação da legislação do sistema de apoio financeiro, a duplicação das secretarias de Estado da Cultura (Bens Culturais e Artes do Espectáculo) que veio romper com a continuidade do trabalho, têm desviado a atenção do essencial, pondo em causa a continuidade do desenvolvimento do tecido cultural profissional. A falta de reflexão e de investimento no desenvolvimento de uma política cultural integrada, que não se reduza apenas à atribuição de apoios financeiros, mas que passe pela implementação de medidas estruturantes fomentando o interesse e a sensibilização da sociedade para as questões da arte e da criação contemporâneas contribuindo para o desenvolvimento do país, tem obrigado estruturas e criadores a permanecer numa simples lógica de sobrevivência. É desta forma o próprio Estado que em última instância fomenta a chamada “subsídio - dependência” ao alhear-se de questões de fundo como: a articulação entre o Ministério da Educação e o Ministério da Cultura; o desenvolvimento do estatuto sócio-profissional do artista, que permita o desenvolvimento digno da carreira dos profissionais do espectáculo; a dotação de meios para que a recentemente renovada Rede de Cine Teatros (com a qual foram gastos milhões de Euros) possa contratar programadores e técnicos especializados que criem dinâmicas locais; a reformulação da Lei do Mecenato, e a sensibilização do sector económico. É esta falta de visão e ineficácia dos sucessivos governos nas questões da cultura, que mantém criadores e estruturas incapazes de criarem meios e formas de crescimento fundamentais, que permitam a longo prazo o aumento da autonomia financeira do sector. Do recentemente apresentado Orçamento do Estado – que prevê uma cativação de verbas na ordem dos 21,4% - poderá resultar, caso seja aprovado, o que há muito a comunidade artística e a da dança contemporânea em particular tem vindo a prever - a desintegração de todo o sector. Os anúncios de aumento (virtual) do orçamento do Ministério da Cultura, que supostamente beneficiaria em particular o Instituto das Artes (instituição cuja função é implementar a política cultural do Governo no domínio de todo o sector das Artes Contemporâneas) afastam o olhar menos atento da realidade. Cativando 21,4% das verbas previstas, o Instituto das Artes ficará na realidade sem verba que permita a continuidade do seu funcionamento, pois dos cerca de 17 500 000 euros que poderá movimentar 16 900 000 euros estão já comprometidos no Programa de Apoio Sustentado restando apenas 500 000 euros para os apoios pontuais de todas as áreas, Internacionalização, Difusão e Formação de Públicos. Muitas estruturas de criação, formação, programação e de residências artísticas entrarão em ruptura, e a frágil rede de funcionamento dos agentes culturais será destruída. Este congelamento não afectará apenas o Instituto das Artes, nem só o Ministério da Cultura! O Governo do Dr. Santana Lopes e a Ministra da Cultura Dr.ª Maria João Bustorff serão portanto os responsáveis por concretizarem aquilo que sucessivos Governos têm vindo a anunciar – a quebra irreparável na continuidade do desenvolvimento da criação artística em Portugal, que poderá levar muitos dos nossos artistas, nomeadamente na área da dança contemporânea, a sair do país. Um país que não respeita os seus artistas, os seus cientistas, os seus professores é certamente um país sem futuro. REDE – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea /15 de Novembro de 2004